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Recordando Ratzenberger: "Ele chegou perto de enriquecer a F-1"

A morte do austríaco, que rompeu com a família para virar piloto, completa 20 anos nesta quarta-feira

À primeira vista, havia um mundo separando Ayrton Senna e Roland Ratzenberger. O brasileiro era um ídolo em todo o planeta, tricampeão mundial e estava na equipe mais poderosa da Fórmula 1. O austríaco, um completo desconhecido (mesmo em seu país natal) e correndo em uma equipe estreante, cujo orçamento anual não pagaria o salário de Senna. Exemplos dos dois extremos deste fascinante esporte.

Mas havia alguns pontos em comum unindo estes seres humanos. Tinham praticamente a mesma idade (Ayrton era três meses e meio mais velho que Roland) e tiveram um casamento curto que fracassou em nome da busca pela verdadeira paixão de suas vidas: correr na Fórmula 1. Quis o destino que o brasileiro tivesse o talento e os meios para atingir este objetivo com mais rapidez e sucesso que o austríaco. Quis o destino que os dois morressem em nome deste sonho e que suas mortes permanecessem, para sempre, ligadas.

Ratzenberger nasceu em Salzburg no dia 4 de julho de 1960 e foi infectado pelo vírus da velocidade aos cinco anos de idade, quando a avó o levou para ver uma corrida de subida de montanha. Pouco depois a Áustria foi invadida pela “febre Jochen Rindt”, e o sucesso do compatriota nas pistas foi o argumento final para a decisão de Roland: iria ser piloto e, acima de tudo, correr na Fórmula 1.

Seus pais tinham outros planos para o único filho homem. Mandaram o adolescente para estudar em uma escola técnica em Graz, mas nada atrapalharia seus planos. Roland pegou o dinheiro e foi para Monza, onde participou de um curso em uma escola de pilotagem.

A decisão lhe custou uma justa bronca paterna e o fez decidir: iria se virar sozinho para seguir no automobilismo. Enquanto o motorista da família Senna buscava o jovem Beco na escola para levá-lo ao kartódromo de Interlagos, Ratzenberger metia a mão na massa trabalhando como mecânico na escola de Walter Lechner em Salzburgring, podendo andar de Fórmula Ford quando um carro estivesse livre.

“Só assistimos uma corrida sua ao vivo uma vez, de F-Ford em Salburgring”, relembra o pai Rudolf. “Roland ganhou as duas baterias, mas não ficou feliz em nos ver. Com freqüência não sabíamos onde ele estava, o que fazia... Ele não queria ajuda e eu não sou nenhum carrapato. E jamais ele nos procuraria para dizer: ‘estou mal, vivo só de sanduíches’”.

[publicidade] Não demorou muito para o austríaco se estabelecer como um homem de ponta na Fórmula Ford 1600. Além dos títulos europeus em 1984 e 1985, Ratzenberger triunfou em 1986 no famoso Festival de Brands Hatch, uma espécie de Mundial da categoria, com cerca de 100 pilotos inscritos. Seu companheiro de equipe era um tal de Eddie Irvine. “A vitória foi em uma espécie de ‘photo-finish’. Foi sensacional para ele porque, como piloto privado, conseguiu derrotar diversas equipes de fábrica”, recorda o irlandês.

Mas as portas da Fórmula 1 não se abriram e, para sobreviver, Roland pilotou nos anos seguintes qualquer carro que lhe fosse oferecido: Fórmula 3, Fórmula 3000, carros esporte e também protótipos. Além de acumular experiência e alguns bons resultados, o caráter afável do austríaco lhe rendeu também muitas amizades entre os companheiros de pista.

No fim dos anos 80 e início dos 90, o automobilismo viveu um enorme ‘boom’ no Japão. O sucesso da Honda e de Ayrton Senna na Fórmula 1, aliado à um período econômico especialmente frutífero, fez com que empresas despejassem rios de dinheiro no esporte a motor. Como ocorreu no futebol com a J-League, as principais equipes correram para a Europa em busca de pilotos com experiência ou jovens postulantes ao sucesso.

Roland mudou-se para Tóquio em 1990 e logo pôs em prática seu lado versátil, competindo ao mesmo tempo na Fórmula Nippon (a F-3000 de lá), Grupo A (turismo, com a BMW) e Grupo C (protótipos, com a Toyota). Dentre suas vitórias, a mais importante veio nesta última categoria, sua favorita, nos 1000 Km de Fuji.

Fora da pista, formou-se uma turma da pesada: Ratzenberger, Irvine, Heinz-Harald Frentzen, Mika Salo, Jeff Krosnoff e Andrew Gilbert-Scott. Vivendo como reis, dividindo hotéis com aeromoças e na mira das fãs japonesas, os pilotos europeus logo passaram a competir também no número de conquistas sexuais.

O norte-americano Krosnoff, que viria a morrer em um acidente na Fórmula Indy em 1996, era o que mais divertia seus colegas. Desenhista talentoso, o piloto tinha mania de enviar faxes às recepcionistas de hotel com esquetes pornográficos.

A amizade era grande e um episódio famoso ocorreu num bar da capital japonesa. Um executivo árabe discutiu com sua noiva oriental até chegar à agressão. Frentzen resolveu intervir, no que o nervosinho sacou uma faca e partiu em direção ao alemão. Sua sorte é que Ratzenberger agiu rápido, dando uma gravata no sujeito e o desarmando. “Roland salvou minha vida”, admite Frentzen, que lembra de outro episódio não tão heróico. “Ele também era muito malandro. Uma vez abandonei em Sugo e ele me deu carona após a bandeirada. Só que foi a 150 km/h para os boxes enquanto eu fazia de tudo para me agarrar ao carro... e desceu do cockpit rindo!”

O que pegou a turma de surpresa foi a decisão de Ratzenberger, o mais bem-sucedido com as mulheres entre todos eles, em se casar com a aeromoça norueguesa Bente. A cerimônia ocorreu em dezembro de 1991, em Salzburg. Um ano depois, estavam separados. “Foi um erro”, reconheceu mais tarde o piloto. “E o pior é que joguei minha agenda telefônica com os números importantes fora. Agora tenho de começar tudo de novo!”

Aos poucos, os europeus do oriente foram conquistando espaço na Fórmula 1. O primeiro a entrar foi Irvine, na famosa corrida de Suzuka em que levou um soco de Ayrton Senna por ultrapassá-lo quando era retardatário. “Roland foi um dos poucos que me ligou para me felicitar pela estreia”, afirma o irlandês.

No final de 1993, a Sauber chamou Frentzen para a temporada seguinte e Krosnoff foi para os Estados Unidos desenvolver os motores Toyota na Fórmula Indy. Quando parecia que sobrariam Ratzenberger e Salo no automobilismo japonês, a recém-formada equipe Simtek resolveu chamar o austríaco para fazer parceria com o australiano David Brabham na Fórmula 1. O sonho finalmente se realizaria.

“Não posso permitir nenhum acidente. Nosso orçamento anual é igual ao salário de Gerhard Berger. Não temos dinheiro para consertar carros.” Foi com este pensamento que Roland Ratzenberger iniciou a temporada de 1994. Pilotar com segurança e inteligência, sem querer extrapolar os limites de seu já limitado equipamento.

No Brasil, Ratzenberger andou mal na sexta-feira e teve problemas no treino classificatório do sábado, ficando a pé no meio da sessão. Terminou fora do grid, com o penúltimo tempo dentre os 28 pilotos, melhor apenas que o aventureiro Paul Belmondo, filho do famoso ator francês.

As coisas melhoraram em Aida. O austríaco deixou os carros da Pacific para trás e largou na última posição do grid. Terminou a prova em 11º lugar, com cinco voltas de atraso em relação ao vencedor Michael Schumacher. Mas ficou satisfeito. “Pilotei sem assumir qualquer risco, dirigindo dentro dos limites do carro para não abandonar. Mas meus limites são maiores que este”, analisou.

Seu único momento importante em relação ao resultado final do GP do Pacífico foi uma quase colisão com Rubens Barrichello no grampo, justamente na corrida que marcou o primeiro pódio na carreira do piloto brasileiro. “A culpa foi toda dele. Já havia subido com o carro todo na zebra, mas ele virou cedo demais. Sempre tomava cuidado quando ia receber uma volta de alguém, especialmente se eram Berger ou Wendlinger”, afirmou Roland.

Curiosamente, diversos ciclos na sua vida se fecharam na semana anterior ao fatídico GP de San Marino. Em Salzburg, uma pacífica conversa com o pai sobre automobilismo ganhou um caráter de reconciliação. “Ele já é quase um fã meu”, comentaria o piloto em Ímola.

Depois, uma semana em Mônaco o ajudou a se integrar aos pilotos da Fórmula 1 que ainda não conhecia. Algumas horas passadas no iate de Gerhard Berger serviram para uma primeira (e única) aproximação entre os dois compatriotas. No final, a viagem até Ímola de carona no Porsche Carrera 4 de Jirki Jarvi Lehto, onde o austríaco reafirmou sua felicidade em estar na categoria e seu otimismo para o fim-de-semana.

Na sexta-feira, um susto na curva Villeneuve: Roland, em sua volta de desaceleração, é quase tocado pelo companheiro David Brabham, que iniciava uma volta rápida. O choque a quase 320 km/h poderia ter tido graves conseqüências, mas foi levado numa boa pelos dois pilotos. “Demos boas risadas sobre isso. Ele não olhou direito e a gente quase bateu”, disse o austríaco, poucos minutos antes do treino de classificação no sábado.

Às 14h20, um pedaço da asa dianteira do Simtek S941 se soltou na aproximação da mesma curva Villeneuve. Ratzenberger perdeu o controle do carro e foi em direção ao muro. São duas pancadas quase que simultâneas: a primeira, a 308 km/h, com a parte dianteira esquerda do carro num ângulo inferior a 90º. A segunda, com toda a lateral do carro, na qual o piloto bateu a cabeça contra o muro. Morte instantânea. A Fórmula 1 em estado de choque.

Ayrton Senna interrompeu sua participação no treino classificatório, assim como os pilotos da equipe Benetton (Schumacher e Lehto, ambos amigos de Roland) e Karl Wendlinger. Gerhard Berger, surpreendentemente, voltou mais uma vez à pista. “Em uma hora destas, ou você continua, ou para de vez. E eu resolvi continuar”, explicou. À noite, com lágrimas nos olhos, o austríaco da Ferrari soltou uma frase tristemente profética em uma conversa com o repórter Heinz Prüller. “Eu esperava por um acidente como este. Tinha de acontecer, já tivemos sorte por muito tempo. E eu temo que esta série negra vai continuar. A morte de Roland não foi nossa última na Fórmula 1.”

[publicidade]David Brabham largou na corrida do domingo. Foi a primeira vez na Fórmula 1 que uma equipe não se retirou de uma corrida após um de seus pilotos ter perdido a vida nos treinos. Ninguém falou mal. A decisão foi tomada em conjunto com a família Ratzenberger e todos consentiram que o próprio piloto teria preferido assim. Até o final da temporada, a Simtek correu com a inscrição “For Roland” na lateral da tomada de ar do motor.

O enterro ocorreu no dia seguinte ao de Ayrton Senna. O momento mais emocionante foi quando Niki Lauda pediu a palavra. “Querido Roland: todos que também participam de corridas entendem porque você amava tanto este esporte e arriscava sua vida por ele. E aos outros, que nunca participaram, não dá para esclarecer exatamente por isto”.

Berger admitiu que nunca havia visto tantas mulheres bonitas em um funeral e comentou: “eu gostava de seu jeito espontâneo de ser, de sua personalidade aberta, com aquela tranquila felicidade que brota de dentro. Roland havia chegado perto de enriquecer realmente o cenário da Fórmula 1.”

Imaginar o que o piloto poderia ter alcançado se o acidente não acontecesse é um exercício interessante. Ele sempre andou no mesmo ritmo de seus companheiros dos tempos de Japão, gente como Irvine, Frentzen e Salo, todos com carreiras longas na F-1. Mas teria de superar um primeiro ano na segunda pior equipe do grid e, sem apoio financeiro, precisaria obter alguma performance realmente sensacional para conseguir um lugar em outro time melhor.

Nestes vinte anos do trágico fim-de-semana de Ímola, seu nome foi relembrado e a ligação intrínseca de sua morte com a de Senna comprovada. Mas Ratzenberger sempre permaneceu vivo na memória de seus companheiros de pista. O filho de Mika Salo com a japonesa Noriko foi batizado de Max Roland. “Pelo menos um pedaço dele permanece conosco”, afirma o finlandês.

Em sua lápide num cemitério em Salzburg, a família inscreveu: “Ele viveu por seu sonho”.

(Texto de Luis Fernando Ramos publicado originalmente no site GP Total em 2004)

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